O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), por meio da 1ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Niterói e da 2ª Promotoria de Justiça de Família de Niterói, ajuizou ação civil pública, com pedido de tutela de urgência, requerendo à Justiça o fechamento da porta de entrada e a cessação do serviço de acolhimento institucional para crianças e adolescentes prestado no abrigo Centro Integrado à Criança e ao Adolescente Portadores de Deficiência Professor Almir Ribeiro Madeira (CICAPD-PARM), localizado em Niterói. Segundo a ação, o objetivo é interromper as gravíssimas violações de direitos humanos constatadas em fiscalização na unidade que acolhe 22 pessoas com deficiência, sendo 20 adultos e dois adolescentes.
A ação foi ajuizada na quinta-feira (20/01) perante a Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Niterói e aponta o Estado do Rio de Janeiro como diretamente responsável pelas violações de direitos humanos que ocorrem no local, tendo corresponsabilidade da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA/RJ) e da Associação das Crianças Excepcionais de Nova Iguaçu (ACENI), cogestoras do abrigo em razão de convênio firmado pelo prazo de 32 meses, que supera os R$ 5 milhões. Segundo a ação, a associação não tem experiência na prestação do serviço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Figura como réu, também, o Município de Niterói, órgão gestor do serviço, que possui o dever legal de reconhecer que os acolhidos que ali vivem devem ser acompanhados pela rede local de saúde e de assistência social.
De acordo com a ação, foi verificado haver acolhidos com longo tempo de institucionalização, adultos que permaneceram no local destinado a crianças e adolescentes custeado pela FIA, em flagrante ilegalidade, bem como a insuficiência das práticas assistenciais ao preconizado na legislação da assistência social e antimanicomial. São 90% de acolhidos adultos, com apenas dois adolescentes no local, um deles prestes a completar 18 anos. Também há inconstância na provisão dos insumos básicos para a sobrevivência digna das pessoas acolhidas, carência de mão de obra e utilização indevida do Benefício de Prestação Continuada (BPC) dos acolhidos. É destacado na ação que não há previsão normativa para o funcionamento de abrigos exclusivos para pessoas com deficiência, em desacordo com os parâmetros legais.
Fiscalização do GATE/MPRJ
Entre os pontos identificados na inspeção realizada pela equipe do Grupo de Apoio Técnico Especializado (GATE/MPRJ), que instrui a ação, estão: a falta de oferta de atividades regulares e diversas na unidade ou fora dela, estando os acolhidos o dia inteiro dentro de suas acomodações, um cotidiano de ócio institucional e ausência de autonomia; desconhecimento pela equipe de profissionais do perfil e situação dos acolhidos; número insuficiente de recursos humanos, muito aquém das exigências legais; a inexistência de qualquer planejamento técnico para a execução de estratégias voltadas à manutenção de vínculos e articulação com as redes municipais de saúde e assistência; falta de informações claras de como a unidade utiliza os recursos dos acolhidos; entre outros aspectos mais graves relacionados à violação dos direitos humanos.
Segundo a ação, um aspecto grave identificado pela fiscalização foi o fato de a unidade privilegiar a medicalização em detrimento do trabalho social voltado à inclusão. “Medicações psicotrópicas eram prescritas para 24 das 28 pessoas acolhidas (à época) por médico psiquiatra que então compunha a equipe – ainda que se trate de unidade de caráter socioassistencial, sem qualquer demanda ou exigência técnica para tal profissional –, o que sugere a contenção química como prática regular de manejo dos acolhidos”, descreve o documento. Outro aspecto apontado foi o registro do livro de enfermagem que revela a administração de medicação psicotrópica como “SOS” com a finalidade de contenção química. No período de 01/11/21 a 20/12/21, por exemplo, foram registradas 17 ocorrências em que a medicação foi forçosamente aplicada, por “agitação” e/ou “agressividade”. “Tal prescrição (…) nunca poderia ser genérica e comum a todos os acolhidos, sem avaliação individualizada por médico psiquiatra. Trata-se de gravíssima violação de direitos, de conhecimento dos réus”, destaca outro trecho da ação.
Ainda segundo a ACP, foi também identificada a falta de transparência e a ocultação pelo abrigo de eventos ocorridos na entidade que são de notificação compulsória à rede de saúde local, como uma tentativa de suicídio. Aponta também que, “ainda mais grave, foi a verificação da ocorrência de três óbitos recentes no abrigo”, dois deles não comunicados às autoridades. A ação também é instruída com atas de reuniões com a Secretaria Municipal de Assistência Social do Município de Niterói (SMASES), que demonstram que o ente público tinha ciência dos abusos que ali ocorrem e que a equipe de saúde mental do Município identificou, por mais de uma vez, que os usuários do serviço eram “dopados” e que a prescrição medicamentosa era excessiva.
A ação aponta também que as circunstâncias narradas de maus-tratos, contenção física e química, uso excessivo de medicação e prescrição genérica e indiscriminada de “SOS” levantam fundadas suspeitas sobre as causas das mortes relatadas, razão pela qual os fatos foram encaminhados à Promotoria de Investigação Penal com atribuição.
Ainda segundo a petição inicial, a omissão estatal também restou comprovada a partir de relatório da SMASES que informa ter constatado “casos graves de violações de direitos que necessitam de providências jurídicas e administrativas”. O relatório da SMASES destaca que “foram relatadas inúmeras violações de direitos humanos como: insegurança alimentar, contenção química através de medicações psiquiátricas, contenção física com restrição ao leito, impedimento de socorro médico, inclusive em casos de acidentes graves, obstáculos nos processos de reinserção familiar, impedimento de contatos dos acolhidos com seus familiares, embaraços em relação à matrícula e frequência escolar, suspeitas quanto a administração de benefícios previdenciários BPC/LOAS, violência psicológica, assédio moral, dentre outros.” Como nenhuma medida foi tomada no âmbito administrativo, apesar de tentativas de solução extrajudiciais, tornou-se necessário o ajuizamento da ação civil pública.
Outras providências adotadas pelo MPRJ
A ação ajuizada requer que o Estado do Rio de Janeiro seja obrigado ao fechamento do serviço de acolhimento de crianças e adolescentes na unidade, não podendo, ainda, receber mais nenhum acolhido.
Individualmente, a 1ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Niterói busca a transferência das crianças e adolescentes cujas famílias residem em Niterói para entidades de acolhimento adequadas ao seu perfil. Já em relação aos provenientes de outros Municípios, também se objetiva seu recambiamento para os municípios de origem, Duque de Caxias e Itaboraí.
Entre os adultos com deficiência presentes no abrigo foi identificado pelo MPRJ que dois são acolhidos há praticamente 30 anos, três há mais de 20 anos, outros três há mais de 15 anos, e mais dez pessoas institucionalizadas há aproximadamente 10 anos, ou seja, décadas de isolamento social e ostracismo, sem qualquer perspectiva de ressocialização, individualização do atendimento ou tentativas de melhorias em sua qualidade de vida. Destaca-se que o MPRJ já celebrou Termo de Ajustamento de Conduta com o Estado do Rio de Janeiro e Município de Niterói para implantação de três residências inclusivas para moradia de adultos com deficiência, mas este não foi não cumprido e é objeto de pedido de cumprimento de sentença homologatória de TAC (Processo nº 0014242-60.2017.8.19.0002). Em que pese ter sido acordado no TAC a execução direta do serviço pelo Município de Niterói, este permanece inerte, o que deu ensejo a pedido de cominação de multa direta e pessoal ao Secretário Municipal, ainda pendente de análise.
Desde 2013, uma pactuação nacional no âmbito do SUAS estabeleceu que os governos estaduais deveriam transferir para a esfera municipal os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes que estivessem sob sua execução (Resolução CIT nº 17/2013, artigo 22), tendo o Estado do Rio de Janeiro e o Município de Niterói descumprido o dever de iniciar o processo de fechamento da entidade, com o encaminhamento das crianças e adolescentes para unidades municipais. De acordo com a ação, o Estado do Rio de Janeiro não mobilizou quaisquer esforços no sentido de iniciar o reordenamento dos históricos abrigos de pessoas com deficiência sob sua gestão, como também não vem cumprindo sua obrigação de apoiar técnica e financeiramente os Municípios na organização dos seus serviços, como previsto pela legislação. Desde 2004, a Política Nacional de Assistência Social já destacava a necessidade de abolir as grandes instituições onde crianças e adolescentes com deficiência foram colocados para viver apartados da família e da sociedade, bem como não se admite o modelo de “abrigões de adultos com deficiência”, sendo essencial o reordenamento da rede e implantação de residências inclusivas.
Existem outras ações ajuizadas contra o Estado do Rio de Janeiro em razão desses acolhimentos irregulares, referente aos abrigos C[entro de Atendimento Integrado Rego Barros (Conceição de Macabu) e Centro de Atendimento Integrado Protógenes Guimarães (Araruama).
ACP n. 0800698-93.2022.8.19.0002 (CICAPD-PARM)
ACP n. 0002285-67.2021.8.19.0052 (CAI Protógenes)
ACP 0000658-33.2021.8.19.0018 (CIPAPD Rego Barros)